Primeiras Memórias
As minhas primeiras memórias da pessoa menina que fui remontam aos três anos. A primeira e a mais fiel foi a da minha ida para o infantário, o Colégio de Santa Maria.
Este foi um dos primeiros espaços onde a avezinha se atreveu aos primeiros voos, naquela casa de corredores compridos e salas amplas com imensas bocas de luz e um terreiro de muros altos e árvores frondosas que nós, meninas de bibe escalávamos, atropelando-nos umas às outras, em gritaria sôfrega e desgarrada, a ver quem chegava mais perto do céu.
Mas a primeira memória foi muito dolorosa e ainda agora, à distância de tantos anos , ela emerge
inteira e pesada para me afrontar.
O átrio estava cheio de baba e ranho, algazarra, olhos com mar invernoso e ondas inquietas, freiras, mães, escadaria de pedra austera e eu agarrada à minha mãe, aos gritos, enquanto a irmã Pia Maria me falava com a mansidão desejável( mas que ela sempre teve) , em situações tempestuosas.
Recordo o grito lancinante que soltei quando me arrancaram dos braços do meu abrigo e eu o vi sumir-se; recordo o som verde do portão de ferro que se fechou de bofetão sobre o meu desespero, recordo o eco da minha voz de menina a quem roubaram a luz da sua felicidade.
No dia do funeral da minha mãe , quando o caixão se fechou, regressei ao portão de Santa Maria e foi aí que descobri a minha primeira memória.
Comentários
E esse abrigo, que era e é mãe, se pudesse chorava. E eu acho que chorou. De contentamento. Por ver que, embora partindo, havia um abrigo onde ia ficar. Um abrigo que ela abrigou uma vida inteira, e que doravante a ia abrigar doce a ela na sua memória.
Ela, se pudesse falava. E eu acho que falou, naquela linguagem que só os eleitos ouvem. É que havia uma últma recomendação a dar à menina:
- Adeus! Agora é contigo. Que a luz das estrelas te ilumine o caminho.
Nota: Eu acho que não devia mandar este texto. Mas, às vezes, deve-se fazer o que não se deve.
A minha mãe quer que eu lhe mande um beijo, mas eu prefiro reler os beijos que me mandou.
OBRIGADA
Grandes tormentas e vendavais o «testaram» no início da viagem...
gritou aos quatro ventos,quando enfrenta o primeiro obstáculo: o arrancar do colo,que é sempre morno/quente,seja qual for a caverna.Esta era muito macia,confortável,acariciadora,eterna...meu Deus,e agora?Porquê,tão brutal impacto?
«-Tem de ser,viajante,só assim saberás conquistar o tesouro que a vida tem para te dar!»
«-Mas eu não quero tesouros,só quero estar de onde vim!»
«-............................»
«-Porque não respondes?!»
«-Amanhã vais ver como é importante,que o itinerário seja assim.
«-MÃE!...»
«-Não respondes,eu sei que também te custa,mas podias,ao menos,teres-me dado aquele retrato,para ficares MAIS comigo!»
Hoje,olhando-me ao espelho,vejo-te multiplicada em todos os poros que me deste.Nem imaginas o gozo que isso me dá!Conseguiste transplantar
a tua sensibilidade,bondade,inteligência e poder sibilino,nos outros,através
de mim.
Que a tua estrela não reduza o brilho em mim e que os corações da humanidade minha,não deixem de pulsar,para continuarem a poder dizer:«Ah!Quanta força de vida,amor
e coragem há em ti,Ibel!»
Obrigada por me ter feito ouvir a voz da minha mãe. Foi tudo isso que ela me ensinou durante toda a vida.Dois meses antes de falecer, eu fui ao quarto dela dar-lhe um beijo e fazer-lhe os mimos habituais e ela olhou muito agudamenta para mim e disse:ó filha, eu vejo estrelas nos teus olhos . Eu deitei-me na cama junto a ela durante algum tempo demos as mãos e ela adormeceu serenamemte.
Percebi nessa altura que os papéis se tinham invertido e que ela era a minha menina, cheia de fragilidades( mas ao mesmo tempo com tanta garra), pedindo-me colinho para adormecer.
Aqui vai par si o poema que lhe fiz nessa noite:
Doce embalo nos teus braços
Eu era a inocência de ser
Coisa nenhuma inquieta
Sossego de me entreter
Nesse embalo dos teus braços
Já tão distante de mim
Quem me dera, minha mãe,
Voltar-te a sentir-me assim.
Um grande beijo para si, neste dia de outono ainda tão azul e luminoso.
Beijo
Beijoca