Camões e as baixas gentes

Contrariamente à maior parte dos poetas do Renascimento, Camões não abandonou a métrica tradicional. Ao longo da vida, foi conjugando com mestria a medida nova com a medida velha, numa soberania poética que atinge o auge n' Os Lusíadas.
Camões assumiu , pensou, meditou , "numa mão a espada e noutra a pena", toda uma herança civilizacional que transpôs para páginas poéticas onde fala das contradições e experiências vividas na pele. 
Enciclopédico, o seu saber da altura equivale à cultura da globalização.  Os Lusíadas são o supremo saber. A Bíblia,  as epopeias antigas, a literatura de viagens, a mitologia, a astronomia , a astrologia,  as crónicas nacionais, os poetas ibéricos e italianos, os filósofos Greco- Romanos nada escapa  nesse monumento literário.
Toda a obra é marcada  pela reflexão sobre temas intemporais: o destino, o desconcerto do mundo, a mudança, a natureza e a áurea mediania, felicidade que o poeta nunca encontrou.
Enredado pelo coração e pelas sucessivas paixões, ousou colocar num mesmo patamar princesas e escravas. Chora por Dinamene, a chinesa morta no naufrágio, e ajoelha-se também  perante Bárbara, ambas escravas, guindadas ao pedestal da adoração.
Amante até à morte, descreve o amor em termos contraditórios, à maneira de Petrarca.
Ler Camões é entrar nos caminhos da alma, é correr mundo, é penetrar no oriente,viver o naufrágio, sufocar de beleza na Ilha dos Amores.

Nenhum poeta esmiuçou a sedução de Vénus como Camões, desdobrando-a em múltiplas  mulheres em quem semeou o coração, umas idealizadas, quase todas reais. 
Só quem sabe o pode fazer. Ele sabia e, por isso, sabemos de cor versos dele. 
Era pequena e já se dizia lá por casa " Alma minha gentil que te partiste/ tão cedo desta vida descontente..." ou " Amor é fogo que arde sem se ver... Um contentamento descontente"e um ir por aí fora até ao mais alto da voz " Que eu canto o peito ilustre lusitano/ A quem Neptuno e Marte obedeceram".
É um deleite andar com Camões pela redondilha ou por versos mais oceânicos. Todos vão desaguar na beleza e na triste sorte de quem cantou em voz eloquente a pátria para morrer a mais miserável das mortes.
Nos Jerónimos não nos ouve nem o poeta ouve os seus versos. Fica-nos a pairar "esse descontentamento", cutelo que melhor o fere e o define.





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