Precisei de Sophia.
De a ler, de ir ao encontro do seu mar e das palavras misteriosas, à espera de um milagre que me levante o véu de nostalgia que me cobre.
Vivo à procura de versos que distribuo à vida, às pessoas  que me cercam, versos ou palavras substantivas que consagrem a beleza, a amizade, a respiração do que é justo.
Dialogo, portanto, com poetas, sem reservas, num êxtase de delírio.
Com eles fico tempo infindo, adormeço com os seus livros, choro, emociono-me. 
Não sei respirar sem palavras, mas é na poesia que descubro a minha interioridade mais profunda.
Se não fugir da vulgaridade dos dias, não agarro o que me é essencial.
Precisei de Sophia.  Para interpretar mágoas. Silêncios.
Para que a transcendência não se evapore da minha alma peregrina.
Reli o conto " Homero", construção simbólica da definição de poeta e de poesia. Homero, esse deus das palavras projetado no Búzio, personagem vagabunda, o louco escorraçado, depois de entoar a sua melopeia misteriosa, com duas conchas brancas e grossas que trazia sempre na sua mão direita.
É com ele que (Sophia), ainda menina, seguindo-o, descobre o esplendor poético preenchido de beleza e música.
É admirável o momento iniciático em que a criança se encontra com uma outra linguagem que jamais abandonará. O êxtase do canto, a deslumbrante presença do Búzio sobre as dunas, balbuciando palavras que só ele entendia, porque a poesia, mais que compreensão, é revelação de sentimentos e sentidos múltiplos.
Porque a poesia é essa camada de linguagem carregada de mistério. Não pode é distanciar-se do ouvido, de uma ária, de um piano, de um clarinete, de um marulhar ondeante, de um fretenir  de cigarra ou de um gorjeio a beber o azul.
O Búzio/ Homero, é o poeta andarilho, numa  mitologia esfomeada de beleza, de canto, de mar, de sol, de vento, conchas..., seu alimento e inspiração.
Também descobri o Búzio, há muitos anos, numa feliz manhã de Maio, quando lhe dei o papel principal, em contexto de sala de aula, para explicar o que é a poesia. Tinha 25 anos.
O conto foi explorado passo a passo, ao som de Mozart, numa claridade mítica que nomeava o mundo.
O Búzio, em cima da duna, clamava a voz das musas para entornar os versos do poema sobre a praia, numa consolidação imanente com a natureza porque, sem ela, o poeta morre.


"No alto da duna o Búzio estava com a tarde. O sol pousava nas suas mãos, o sol pousava na sua cara e nos seus ombros. Ficou algum tempo calado, depois devagar começou a falar. Eu entendi que falava com o mar, pois o olhava de frente e estendia para ele as suas mãos abertas, com as palmas em concha viradas para cima. Era um longo discurso claro, irracional e nebuloso que parecia, com a luz, recortar e desenhar todas as coisas. Não posso repetir as suas palavras: não as decorei e isto passou-se há muitos anos. E também não entendi inteiramente o que ele dizia. E algumas palavras mesmo não as ouvi, porque o vento rápido lhas arrancava da boca. Mas lembro-me de que eram palavras moduladas como um canto, palavras quase visíveis que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que chamavam pelas coisas, que eram o nome das coisas. Palavras brilhantes como as escamas de um peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os restos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas.


Sophia de Mello Breyner Andresen, "Homero", in Contos Exemplares





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